Raimundo por percisão

Por Kleber Boelter, 13 de janeiro de 2010 19:09

Raimundo suicidou-se na manhã do dia 28 de fevereiro de 2.000. Sobre a cama de madeira tosca, uma sacola surrada com várias peças de roupa aberta. Lá fora, o mesmo mormaço úmido, uma névoa viscosa de calor que, durante toda a vida, empapara a pele e embrutecera os homens. Seu pai já arrumara a pequena canoa que o levaria numa longa jornada até a cidade e ao posto do Exército onde ele deveria se apresentar para um ano de serviço militar.

Quem o encontrou caído sobre uma poça de sangue que ainda escorria do ventre foi sua mãe, Maria Aparecida. Ela sabia da angústia enorme do filho e por isto estranhou sua demora. Abriu a porta com cuidado e deparou com a cena terrível. Não gritou. Na floresta úmida, há muito o calor, os insetos e as doenças haviam roubado o espanto e atrofiado os corações. O sofrimento era parte do cotidiano e as pessoas aprendiam a conviver com ele. Por isto, Maria Aparecida assustou-se quando viu correrem lágrimas de seus olhos pela primeira vez na sua vida.

Quando o pai de Raimundo entrou no quarto ela ainda estava de pé, com as mãos apertando o peito. Ele olhou para seu filho estendido no chão, o rosto contorcido virado para cima, os olhos arregalados e os braços jogados para o lado num desenho assimétrico e grotesco. Ele estava nu da cintura para baixo e do ventre brotava uma faca enferrujada, com um cabo redondo erguido como um pênis em ereção.

— Eu sabia que este cabra ainda ía aprontar. Eu sabia!

Virou as costas e saiu do quarto como em protesto. O pai de Raimundo sempre reclamara de uma certa fragilidade do filho para com o trabalho pesado do seringal. O manejo da faca num desenho primitivo ferindo o tronco. O roçar da pele nua contra a rugosidade da seringueira, esfolando e ferindo braços, peito e coxas. O lento recolher da seiva amarelada e pegajosa, que brotava dos talhos numa lerdeza infinita. O transporte no caiaque rude correnteza acima, num esforço dilacerante de músculos e nervos na luta do remo contra o destino. Sabia que o menino sempre se esforçara e ele fora rígido como todo pai deve ser, para forjar o caráter do homem desde cedo. E ele muito esperara aquele filho, depois de ver nascerem quatro meninas inúteis, que ajudavam na roça pobre e na criação raquítica de galinhas, mas que não tinham o vigor físico necessário para vencer a natureza injusta. E agora o covarde o abandonava. Já ía ficar um ano fora, no quartel. Mas ía ser um ano bom porque ele poderia estudar um pouco, comeria melhor e aprenderia na disciplina do exército a ser um homem ainda mais duro. “Como vou pegar borracha sozinho, cada dia mais velho e cansado?”. Era só o que lhe importava.

Maria Aparecida soluçou. O corpo esguio dobrado sem nexo sobre aquela pasta vermelha a fazia lembrar do quanto se empenhara no cuidado daquele menino. Dera-lhe a melhor alimentação possível dentro de sua miséria e carências, muitas vezes deixando suas irmãs passando fome para que ele pudesse desenvolver um corpo mais forte e atender as expectativas do pai. Tivera enorme dificuldade em mantê-lo apartado delas e do próprio pai, em banhá-lo escondido e trocar-lhe as roupas. Dedicara-lhe mais atenção e cuidados para ajudá-lo a vencer as contradições do corpo e explicar que ele era diferente das irmãs porque assim devia ser, porque assim seu pai exigia.

Maria Aparecida lembrava-se nitidamente das palavras do marido, após descobrir sua nova gravidez. “Mais uma cria, mulher! Cê já me deu quatro muriçocas inúteis. Eu tenho percisão é de um homem para me ajudar no seringal. Se nascer outra mulher, eu mato. Juro que mato!”

Ela não podia permitir isto.

Novembro de 1999.

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